23 de junho — Santos Nicandro e Marciano, Mártires

Extraído de uma edição de 1928 do livro “Na Luz Perpétua — Leituras religiosas da Vida dos Santos de Deus, para todos os dias do ano, apresentadas ao povo cristão” 1

Nicandro e Marciano eram soldados do exército romano. Vendo as grandes injustiças com que eram tratados os cristãos, resolveram renunciar a todas as vantagens que auferiam da sua posição e abandonar o serviço militar. Foi bastante para se tornarem alvo das perseguições da parte das autoridades. Citados perante o tribunal do governador, tiveram conhecimento duma ordem do imperador, em virtude da qual seriam obrigados a prestar homenagem aos deuses. Nicandro declarou não poder reconhecer a ordem como dada aos cristãos, por ser contrária à religião dos mesmos, que proibia idolatria.

Daria, a mulher de Nicandro, com palavras animadoras, sustentou o espírito de seu marido, para que ficasse firme na sua fé. Máximo, o governador, interrompendo-a, disse-lhe: “Ó mulher miserável, que deseja a morte de seu marido”. — “Enganas-te — replicou Daria — não é sua morte que desejo, mas que tenha a vida em Deus, para que não morra para a eternidade”. — “Quem é quem não percebe teu intento? Está claro que procuras livrar-te deste homem, para poderes te casar com outro”. — Daria: “Neste caso, se achares ser esta minha intenção, podes me matar antes dele”. Para tanto não chegava o poder de Máximo, cuja jurisdição se restringia aos militares, mas não às mulheres. Não obstante, deu ordem para que ela fosse presa. Pouco durou a prisão e Daria voltou para assistir ao julgamento de Nicandro. “Dou-lhe tempo, disse Máximo a este. Faça tua escolha entre a vida e a morte”. — Nicandro: “Já escolhi: não há mister marcar prazo; eis a minha resolução; não quero, senão, salvar-me”. Máximo, interpretando mal estas palavras, já se felicitava pela vitória sobre o espírito cristão. Nicandro, porém, tirou-o imediatamente deste engano, dirigindo-se a Deus, que o protegesse no meio das lutas e tentações desta vida. “Como, disse Máximo, não foi agora mesmo, que pediste a conservação da vida e estás a pedir a morte?” — A vida que eu desejo ter — respondeu Nicandro — é a vida eterna, bem diferente desta vida terrestre e mortal. Disponha do meu corpo, como te aprouver; declaro outra vez, que sou cristão.

O inquérito de Marciano teve o mesmo resultado. Os dois oficiais foram detidos na prisão e só vinte dias depois tiveram que responder novamente ao júri. Sendo perguntados, se estavam dispostos a se sujeitar às ordens imperiais, respondeu Marciano: “Podes, ó juiz, poupar teus estratagemas e impertinências, que não abandonaremos a nossa religião. O que pedimos e exigimos é que não mais nos prives da nossa felicidade. Não experimentes mais a nossa paciência, e faça-nos viver com aquele que por nós morreu na cruz; tu o rejeitas e injurias, nós o veneramos e adoramos”.

Máximo, vendo que era inútil insistir para que deliberassem outra coisa, condenou-os à morte pela espada, não sem manifestar seu grande pesar de ver-se obrigado a recorrer à medida tão bárbara. Nicandro e Máximo, porém, agradeceram-lhe de coração e louvaram a Deus, por terem merecido a distinção da coroa do martírio.

No dia da execução vieram a família e os amigos dos dois heróis para os acompanhar no caminho da vitória. Estavam presentes Daria, e Pasícrates, irmão de Nicandro, que levava ao colo Papiniano, o filhinho do casal. Daria conservou a calma, digna de uma esposa dum mártir. Não assim a mulher de Marciano. Esta, desfeita em pranto, não achou a conformidade necessária para oferecer a Deus o grande sacrifício. Tudo que o amor é capaz de inventar, ela experimentou para salvar da morte o marido idolatrado. Com palavras acariciadoras entrecortadas de soluços, pediu, suplicou com instância amorosa que não a deixasse, que tivesse pena do filhinho. No auge de sua dor, atirou-se-lhe ao pescoço, apertando-o contra seu peito, não mais querendo o largar. Marciano, não sabendo, como de outro modo se livrar desta horrível tentação, pediu a seu amigo e bom cristão Zótico, que a tomasse a si e a afastasse.

Tendo chegado ao lugar do suplício, Marciano deu sinal a Zótico, para que lhe trouxesse a esposa. Tendo-a diante de si, abraçou-a com todo o amor e disse-lhe: “É preciso que vás para casa, pois te falta a coragem de presenciar meu martírio: peço-te no Senhor. Vejo tua alma obcecada e tiranizada pelo demônio”. Tomando nos braços seu filhinho, beijou-o ternamente e com os olhos elevados ao céu, exclamou: “Deus, Senhor todo-poderoso, tomai esta criança debaixo da vossa proteção”.

Os dois mártires abraçaram-se pela última vez, e dirigiram-se ao lugar onde estavam os algozes. Marciano, virando-se para o povo, viu a esposa de Nicandro, que debalde procurava penetrar por meio da multidão para chegar perto do seu marido. Marciano estendeu-lhe a mão e conduziu-a a Nicandro. Este, vendo-a, disse-lhe: “Deus esteja contigo”. Daria respondeu-lhe: “Meu caríssimo esposo, tenha ânimo! Luta com coragem! Dez anos eu passei longe de ti, pedindo a Deus dia por dia que me desse a satisfação de te ver. Tive esta graça, e hoje que entras na vida eterna, de coração te felicito. Sinto-me feliz de ser a esposa dum mártir. É este meu orgulho e hoje maior é minha alegria do que no dia do nosso encontro, depois de tantos anos. Tenha ânimo, dê testemunho pela fé, e peça para mim a graça, de me salvar da morte eterna”.

Vieram os algozes. Aos mártires foram vendados os olhos e poucos instantes depois suas almas receberam a recompensa merecida. O martírio de Nicandro e Marciano ocorreu no ano de 303.

Reflexões

Como é encantador o heroísmo de Santa Daria, que, longe de se entristecer com o martírio de seu esposo, o anima a perseverar, quando pelo contrário a esposa de Marciano tudo fazia para não perder a companhia do mesmo. Este procedimento, sem dúvida, foi para Marciano uma tentação mais forte que a própria morte. Ajudado, porém, pela graça divina, venceu não só a crueldade do tirano, como também a insistência amorosa de sua mulher. No momento em que Deus exige o sacrifício da fé, Marciano reprime os sentimentos mais legítimos de esposo e pai, compenetrado do dever de viver e morrer como cristão. — Grande pecado cometem cônjuges que, em vez de se santificarem mutuamente, desvirtuam a santa instituição do matrimônio, animando e seduzindo um ao outro ao pecado. Grande pecado cometem pais e educadores, se pela palavra e seu exemplo concorrerem para a perdição de seus filhos e alunos. Maus exemplos causam maior mal que os bons podem evitar. Entre os condenados no inferno, dificilmente haverá um que não, e com toda a razão, deva atribuir sua tristíssima sorte a um escândalo de que fora vítima. Responsabilidade tremenda têm aqueles que deram escândalo, causando com isto a perdição eterna de outros. Quem uma vez deu escândalo, grave motivo tem de se preocupar seriamente de sua eterna salvação.

Que dizer dos cônjuges que levam uma vida que em tudo equivale a uma constante profanação da religião; para os filhos dos quais melhor teria sido se nunca tivessem visto a luz do mundo? Que dizer daqueles cônjuges que, dando a vida a seus filhos, são também os geradores de sua morte eterna? Que responderão eles a seus filhos, quando estes, no dia do juízo final, em presença do juiz eterno e de todos os eleitos, os interpelarem e deles exigirem a felicidade eterna? Que responderão ao juiz eterno todos aqueles, que pelo seu mau exemplo causaram a morte eterna de alguém? “Ai daquele que der escândalo”.

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  1. PDF desse livro disponível em: https://archive.org/details/pe-joao-baptista-lehmann-na-luz-perpetua-vol-i_202312 

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